PRIMEIRO CAPÍTULO - TRISTE OUTUBRO DE 67
16/01/2013 13:47
I - TRISTE OUTUBRO DE 67
Há muito tempo que essa história aconteceu. Naquela época se vivia um tempo mal por aqui. Ninguém podia mais falar o que queria. Se possível fosse proibiriam as pessoas de pensarem! Era o que Sophia costumava ouvir os pais reclamarem. Os pais da pequena Sophia trabalhavam em um jornal. E mesmo se seus dez anos de idade lhe fornecessem consciência o suficiente para entender o que era a ditadura, preferia ocupar-se com outras coisas: seus livros e cadernos. Cadernos intocáveis. Não havia nesse mundo quem ousasse tocar nos cadernos de Sophia. Assim como também não havia no mundo quem soubesse o que tanto ela escrevia naquelas páginas. E passava horas deitada no chão do aconchegante quarto que seus pais decoraram cor de rosa...
Cada vez menos via seus pais em casa. E quando não estava na escola, estava na companhia de Judith, a empregada. Certo dia de outubro, exatamente 13 de outubro de 1967, o horário de seus pais chegarem do trabalho passou, eles não apareceram e nem ligaram. Judith, já havia feito inúmeras ligações para a redação do jornal sem que ninguém atendesse as chamadas. A noite foi se adiantando, as ruas ficando vazias e já não havia números na agenda telefônica que Judith pudesse ligar. E estava ali cansada, preocupada, observando Sophia debruçada sobre os cadernos escrevendo Deus sabe o quê!
Pouco mais tarde naquela noite o barulho do motor de um carro foi ouvido. Pneus derraparam na pista e frearam bruscamente de frente a casa onde estavam numa manobra que invadiu o jardim. A placa NÃO PISE NA GRAMA talvez abrisse exceções para carros! A luz do farol do carro entrou pela janela iluminando a sala e ofuscando a visão de Judith que corria para mesma janela na esperança de confirmar que fossem seus patrões. A essas alturas, Sophia que se rendeu a um irresistível sono, levantava do sofá esfregando os olhos. Tentava entender o que acontecia.
- Onde está Sophia? Disse um homem alto e magro de cabelos e barbas brancos um tanto desgrenhados que entrou ofegante na sala.
Era George, velho companheiro e também jornalista que trabalhava junto com os pais de Sophia. Estava nervoso e inquieto mesmo que tentasse sorrir para disfarçar. Assim que viu Sophia no sofá apressou-se em abraça-la. Foi um abraço rápido e que o aliviou.
- Tio George o papai e a mamãe ainda não chegaram!
- Eu sei minha querida. E não virão mais hoje. Tiveram que viajar urgentemente por causa do trabalho e eu vim avisá-la para que não se preocupe!
George trocou olhares expressivos com Judith que estava encostada na porta assustada. Judith sim sabia o que era a ditadura e também sabia o que significava aquela viagem que George falava. Não era viagem. Seus patrões, pais de Sophia, haviam sido presos.
- E porque não me levaram?
- É uma viagem de trabalho e você não iria gostar. Só adultos estarão lá. E você não sabe como são chatos os adultos quando se reúnem! - Riu piedosamente para Sophia – Mas eu tenho uma novidade para você! Arrume suas coisas, poucas coisas, pois você vai passar esses dias na casa de seu avô!
George esforçou-se para dar aquela notícia da forma mais animadora possível. E conseguiu. Em segundos não se viu mais Sophia na sala. Agora estava colocando sobre a cama o que queria levar para casa de seu avô.
Já não precisavam disfarçar um para o outro. Judith não conteve a lágrima enquanto George lhe dava um abraço de consolo.
- Marta e Túlio foram presos pela tarde Judith! Estão sendo acusados de conspiração contra o governo...
Judith deu um gemido doloroso seguido de um choro contido. Ela não queria que Sophia percebesse quando descesse alegre pelas escadas.
- E se ela ouvir na televisão ou ler algum jornal?
- Por isso Marta e Túlio estão mandando ela para a casa do avô. Lá não tem televisão e Sophia nem sentirá falta com tantas coisas que já deve está imaginando fazer.
George entregou ainda um pequeno rolo, no entanto rechonchudo, de dinheiro a Judith. Marta e Túlio, além do pagamento, mandaram alguns cruzados a mais para que Judith pudesse se manter caso tivesse dificuldade em arranjar logo outro emprego. Eles sempre foram muito bons com Judith que cuidava de Sophia desde os quatro anos.
Após enxugar as lágrimas e ouvir de George que Sophia ficaria tempo indeterminado com o avô, Judith subiu as escadas compassadamente. Entrou no quarto ajudou Sophia e em minutos depois já estavam de volta a sala. George estava dependurado no telefone e discutia com alguém do outro lado da linha. Assim que percebeu a presença de Sophia disfarçou com um sorriso discreto.
- Está tudo pronto? Acabei de falar com seu avô e ele está ansioso para te ver, sabia?
Sophia entrou no carro muito alegre enquanto acenava para Judith encostada na porta contendo o choro. Dando a ré, saindo do jardim, aquele carro desceu a rua vagarosamente até sumir na esquina. Nesse momento, porém, Judith não conteve as lágrimas e chorou enquanto cobria os móveis da casa com lençóis para uma longa temporada fechada.
Os risos dos amigos, o som harmonioso de Jazz, as conversas altas dos domingos naquela casa pareciam ecoar fantasmagoricamente. Os filhos dos amigos de trabalho de Marta e Túlio corriam escada acima e escada abaixo nos finais de semana e deixavam Judith com os nervos à flor da pele. Mas ali, na hora da despedida daquele lar que fora feliz em outrora, tudo aquilo deixava uma profunda saudade. A porta rangeu, seguida do tilintar metálico da chave na fechadura. A casa estava trancada. As lembranças ficaram lá dentro e a saudade fez o prazer de acompanhar Judith por longo tempo após aquele dia!
Foi uma noite fúnebre para todos que conheciam aquele casal. O telefone daquela casa ainda tocou incontáveis vezes naquele resto de noite entrando pela madrugada. Mas a única que ainda poderia atender ao telefone estava acordando no banco macio do carro de George. Os raios de sol reluziam o vidro do banco de passageiro onde estava e a claridade fez Sophia acordar. O rádio do carro estava sintonizado em uma estação de notícias. George, ao perceber que Sophia acordava trocou a frequência e sorriu graciosamente para a pequena.
- Estamos quase chegando! Você dormiu a viagem toda. Disse ele.
A menina sorriu sonolenta. A realidade nem de longe passava pela cabeça dela. E a música dos Beatles que tocava na nova frequência do rádio não a deixaria preocupar-se com isso.
A paisagem que passava pelas janelas do carro foi mudando pouco-a-pouco e conduzia a uma sensação de paz a George. Já não se via mais o longo tapete de asfalto até o horizonte. Aquela visão fora trocada por árvores e um chão de terra. Colinas e montanhas arborescidas. As araucárias estavam por toda a parte até onde pudesse a vista alcançar. Mais alguns quilômetros percorridos até que as canções de Cely Campelo, que agora tocava, foram invadidas por um continuo chiado no rádio. George então anunciou:
- Chegamos Sophia!
O carro foi parando próximo a um senhor em pé perto de um suntuoso portão de madeira. O rosto dele era conhecido para Sophia. Ao lado dele uma bela jovem de quinze anos. Ela se chamava Amanda. Sophia também conhecia aquele rosto.
- Menina Sophia como você cresceu! Disse o velho tomando-a nos braços assim que ela desceu do carro.
O vô Silvano tinha um sorriso inconfundível. Mas naquele momento a voz rouca dele embargou e uma lágrima caiu dos olhos vermelhos, do qual procurou enxugar rápido do rosto! Sophia e seus grandes olhos castanhos lembrava muito Marta filha de Silvano. A emoção não poderia ser contida. George tirava as poucas malas do carro e entregou a Silvano também emocionado por toda a situação.
Naquela manhã ainda, George fora obrigado a ficar para tomar um café. E logo após o almoço despediu-se de Sophia, que na companhia de Amanda, já havia corrido e desbravado boa parte da chácara de seu avô.
A pequena Sophia estava em boas mãos. George já poderia voltar despreocupado para a cidade. Longo abraço marcou a despedida. E aquele carro voltava a sumir no horizonte da estrada de terra. Pelo retrovisor observava a menina, seu avô e a jovem Amanda cruzarem os portões de madeira em um lento cortejo...
Naquela chácara Sophia estava longe do perigo e próxima de uma aventura nas terras maravilhosas de Beatriz Ávilagrin, sua avó!